domingo, 20 de janeiro de 2013

SACÍ  PRESO   NA  PENEIRA

Os psicólogos e educadores dos tempos atuais— primeira década do século 21 — estigmatizam a educação das crianças de há 60 ou 70 anos atrás. Dizem que as histórias infantis daquela época – Branca de Neve, Joãozinho e Maria, Chapéuzinho Vermelho, entre outras — são histórias de terror, de medo, de suspense e que podem ser a causa de muitos problemas psicológicos dos adultos de hoje.
Sem falar nas canções de ninar— Atirei o Pau no Gato, Dorme Nenê Senão a Cuca Vem te Pegar, etc. — seriam politicamente incorretas ou totalmente inadequadas para as crianças de então.
Ledo engano. Minha geração e outras que foram criadas ouvindo aquelas histórias e cantando essas canções, é muito mais equilibrada do que as posteriores.  Sem falar nos desafios que eram propostas nas intimidações com o fito de evitar que crianças fizessem “artes”. Mas quanto maior a proibição ou a ameaça, mais a gente sentia vontade de fazer o que eram consideradas diabruras infantis.
O que era lenda para os adultos era pura realidade para nós, crianças. Havia, entre outras, a história misteriosa do Saci Pererê, pretinho de uma perna só, barrete vermelho na cabeça e cuja presença era anunciada por assobios, trocava as coisas de lugares, escondias os objetos de uso mais constante e confundia as pessoas Diziam até que fazia os idosos se esquecerem de onde tinham colocados os óculos ou as dentaduras. 
— Tomem cuidado! Quando ouvirem um assobio dentro de um redemoinho, o Saci tá lá!
E tinha mais. Havia a possibilidade de prender o Saci.
— É só jogar uma peneira na direção de onde vêm os assobios que ele fica preso debaixo da peneira.
Como era praticamente impossível a tríplice conjunção — ter uma peneira à mão quando passasse um redemoinho e ouvir os assobios do Saci, prender o pretinho era inimaginável.
Além do medo. Imagine, prender o Saci! Quando ele escapulisse, na certa iria se vingar.
Mas... quem pode com criança? 
Anselmo era corajoso, o mais atrevido da turma. E foi numa tarde quente, no quintal de sua casa, que tudo aconteceu. Jogávamos bolinhas de vidro, num brinquedo chamado gude no terreno limpo.  Dona Helena tinha acabado de lavar a peneira usada na cozinha e a colocara a secar sobre um banco rústico. Peneira de taquara, de treliça fechada.
Somente nós quatro, Anselmo, eu, Daniel e Juquinha, garotos de dez ou onze anos. A gente discutia todos os lances do jogo, quando passou por nós um pé de vento, zunindo, trazendo poeira e folhas secas. 
Em seguida, ouvimos sons no meio do redemoinho. Pareciam assobios.
— Viche Maria! — Gritou Anselmo — É o Saci! 
— Corre gente! — Gritei, e comecei a correr. Os outros me seguiram, menos Anselmo, que gritou: 
— Vou pegar ele!
Quando olhei para trás, vi Anselmo pegando a peneira e jogando-a sobre o local de onde partiam os sons.
Paramos, os três que corriam.  Anselmo pulava de um lado para o outro rodeando a peneira, que, por força do vento, balançava nas beiradas. E gritava:
— Peguei! Peguei! O Saci tá preso!
Parece que os assobios se intensificaram. Era uma barulheira, misturada com os gritos de Anselmo. Escondi atrás do tronco grosso da laranjeira. Juquinha e Daniel agacharam-se atrás do tanque de lavar roupa. 
Os momentos daquela parafernália de sons duraram, para nós, uma eternidade, até que os ruídos foram sumindo e a peneira se aquietou sobre o chão.
Com o silêncio, o suspense aumentou.
— Ele tá lá debaixo, esperando alguém tirar a peneira pra ele sair. — Disse Daniel.
Anselmo se juntou a nós, agora sim, com medo da raiva de Saci quando ficasse solto. Todos tremíamos que nem varas verdes, de terror.
— Vamos prá dentro de casa. Lá ele não entra.
Entramos na cozinha. Dona Helena desconfiou de que alguma coisa havia acontecido.
— Ces tão com cara de quem aprontou. Que foi que fizeram no quintal?
— Nada não, mãe. — Disse Anselmo.
— Sabe, dona Helena...? A gente tava brincando... aí o Saci chegou num pé de vento...
— Que besteira é essa?
— Juro! Até ficou preso...
— Ara, vamos lá ver que vocês aprontaram.
Anselmo, ainda com medo (e ele era o mais corajoso da turma) disse:
— Não mãe, deixa prá lá. Amanhã a gente tira... ele tá debaixo da peneira.
— Peneira? Que é que vocês fizeram com a minha peneira?
Sem esperar resposta, dona Helena saiu para o quintal. Nós fomos atrás.
Ela viu a peneira no chão do quintal.
— Seus porqueiras! — e assim dizendo, pegou a peneira do chão.
Quando vimos que nada havia debaixo da peneira, ficamos aliviados.
— Olha só, tinha lavado a peneira, agora tá suja de terra. Que foi que vocês fizeram?
E sem esperar resposta, pegou Anselmo pelo cangote e deu-lhe alguns puxões de orelhas.
— E vocês, cambadinha, vão procurar o Saci nas suas casas.
É claro que ninguém espalhou a história – um tanto pelo medo que passamos, outro tanto pela reprimenda de Dona Helena, que nunca soube que, sem querer, tinha liberado o Saci da sua prisão, debaixo da peneira.

ANTONIO ROQUE GOBBO
Belo Horizonte, 17 de janeiro de 2013
Conto # 765 da Série Milistórias


sábado, 7 de julho de 2012

À PRICURA DO PAI


Lindoval tinha doze anos quando encontrou o pai. Era um garoto moreno, de olhos pretos e tristes. Magro e alto. Os braços movimentavam-se sem parar, mesmo quando estava parado. Inquieto, parecia estar sempre procurando alguma coisa ou alguém.
 Te aquieta, minino ! —  A mãe zangava com ele constantemente. —  Vai estudar! Procura alguma coisa pra fazer.
Isto quando ele estava no barraco. Vivia com a mãe na favela. Freqüentava a escola do bairro e cabulava a maioria das aulas. Nos dias em que faltava à aula, saía à procura do pai. Saía  de manhã sem dizer à mãe aonde irá. Percorria as ruas do bairro, dirigia-se à garagem dos ônibus situada do outro lado do bairro, pegava carona, ia ao centro da cidade, zanzava sem parar.
Tinha apenas seis anos quando o pai, cobrador de ônibus, saiu de casa e não voltou mais. Sentiu a ausência dele desde o primeiro dia em que sumira. A falta do carinho daquele homem forte, que passava a mão na sua cabeça ao sair de casa, ou quando retornava, à noite, era uma dor que não passava.
 Mãe, quando é que o pai vai voltar?
Ela não sabia, por isso não respondia ao filho. Acabou por não perguntar mais. E quando deixou de perguntar, passou a procurar o pai.
Tornou-se figura conhecida na garagem dos ônibus da linha onde o pai trabalhava. Os empregados o trataram com carinho, a princípio.
 Olha, Val, seu pai vai voltar qualquer hora. Não fica triste não. Ele vai até trazer um presente pra você.
Aos dez anos, já tinha entendimento para pensar que o pai talvez tivesse morrido.
— Mãe, será que o pai morreu e ninguém ficou sabendo?
— Ara, Val, cala a boca. Ele ta bem vivo por aí. Qualquer dia aparece.
Na garagem, os colegas afirmaram:
— Não, Val, ele não morreu não. A gente fica sabendo de todos os desastres com os ônibus. Sabe quem ficou ferido e quem morreu.
O pouco que ele sabia era que, no dia do sumiço, o pai havia saído de casa para o trabalho e não apareceu  na garagem para pegar no serviço.
Val ficou obcecado. Andava quilômetros e quilômetros, ia de uma garagem de ônibus a  outra, perguntava, insistia.
Ficou afoito. Quando o primeiro ônibus saia da garagem, escondia-se no interior e viajava para o centro ou para outros bairros. Prestava atenção na movimentação dos veículos, saindo e chegando em horários diferentes. Um motorista, penalizado com o rapaz (aos doze anos era bem desenvolvido), ensinou-o a dirigir. Tudo muito escondido, é claro.
— Não vai falar pra ninguém, ta bom?  Se o chefe da garagem souber posso até perder o emprego.
— Ainda vou ser motorista de ônibus e vou achar meu pai. —  Prometia a si mesmo e ao amigo que o ensinava.
À medida que crescia, aumentava a ânsia de encontrar o pai. Começou a ver pessoas que pensava ser seu pai. Ficou obcecado. Por diversas vezes, ao abordar estranhos, na tentativa de perguntar, foi confundido com pivete e repelido com vigor.
— Sai, garoto, não te conheço.
Ou
— Fica longe ou chamo a polícia.

No domingo, 12 de agosto, dia dos pais (o que, para Val, nada significava), ele viu uma oportunidade. Chegou cedo à garagem, os ônibus já haviam saído. Alguns permaneciam encostados, vazios. Eram os reservas ou substitutos. Sem que ninguém se desse conta, entrou num desses carros e saiu da garagem, dirigindo. Rodou pela cidade por mais de duas horas e cerca de oitenta quilômetros. Perdeu-se no trânsito do centro.
Putz. Agora tou ferrado.
Vendo na sua frente um ônibus da mesma cor que o seu, pensou:
Vou atrás daquele ônibus, assim chego na garagem.
Uma freada brusca do veículo à frente e Val não conseguiu evitar a batida. Choque violento, pois os veículos trafegavam a boa velocidade. O corpo de Val foi jogado contra o vidro, por cima do volante da direção. O sangue brotou pelos cortes na cabeça e na face.
Populares acorreram ao local. Val foi retirado do veiculo e estendido na calçada. Estava semi-consciente. Via a movimentação das pessoas através de uma cortina rubra. Ouviu a sirene da ambulância se aproximando. Pessoas movimentando-se com rapidez. Uma padiola foi colocada ao seu lado. Dois homens de branco aproximaram-se e enfiaram as mãos por baixo de seu corpo. Val abriu os olhos e viu o rosto do homem que se abaixava para suspendê-lo.
É ele! É ele mesmo! —  pensou.
 Pai...papai... —  disse. E desmaiou.
O outro  enfermeiro escutou as palavras de Lourival e perguntou ao colega:
— O rapaz o chamou de pai? É seu filho?
— Qual...Nunca o vi. Deve ser por causa que hoje é o dia dos pais.

ANTONIO GOBBO
Belo Horizonte, 24 de julho de 2008-
Conto # 505 da Série Milistórias – 754 palavras
Os contos da Série Milistórias são arquivados na
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.








sábado, 17 de dezembro de 2011

ACIDENTE PROFISSIONAL

— Du, vai na venda e traz um sabão e um anil! Vai num pé e volta noutro, ouviu?
A ordem da mãe vem do quintal. Eduardo ouve, levanta-se a vai à cozinha. Na prateleira do guarda-comida apanha a caderneta da venda e grita para a mãe:
— Tou indo, mãe!
Tem pressa. Entre as folhas do livro de história do Brasil está escondida uma revistinha de histórias em quadrinhos de sacanagem. Já viu, não se sabe quantas vezes, a tal história. Mas sempre se delicia com as figurinhas mal desenhadas que mostram um simples encontro entre um homem e uma mulher que termina numa “trepada”. Mais tarde, irá se masturbar, lembrando-se das cenas toscas e dos personagens sem expressão. Ao passar pela porta do quarto onde dormem a mãe e o pai, ouve um gemido: é o pai, que só geme quando está dormindo. Papai tá sentindo dor. Coitado. Pensa, afastando-se da porta.
Enquanto caminha com as pernas curtas e cambaias, descalço, na direção da loja de seu Belém, remói as queixas que não consegue falar com a mãe. É todo dia a mesma lengalenga. Uma barra de sabão e uma pedrinha de anil. Por que não compra logo três ou quatro barras de sabão, anil para a semana? Tudo fica anotado na caderneta pra pagar no fim do mês. Mas não pode, tem de ser todos os dias em que ela tem roupa pra lavar.

Ambrósio acordou com o próprio gemido. Passou mal a noite, com dores na mão enfaixada. Quando está acordado, consegue evitar os gemidos. Para não dar mais preocupação à mulher ou evitar que as crianças fiquem mais assustadas. De madrugada dormiu um pouco e acordou com a fincada lancinante. Acordou com o gemido alto.
Já vai para mais de dois meses que se encontra naquela situação. Tudo aconteceu na fábrica de móveis onde trabalhava. Foi de manhã, logo no início do dia: ao passar uma peça de madeira na desempenadeira elétrica, uma das afiadas lâminas escapou de seu encaixe, fez o caibro voar de suas mãos, ao mesmo tempo em que engolia seus dedos e escalavrava a mão. Os colegas da oficina correram para atendê-lo. Desligaram a máquina, que parou num lamento, o som decrescendo como um animal morrendo. Sobre a superfície lisa da máquina, serragem e cavacos pintalgados de vermelho misturavam-se ao sangue que esguichava da mão arrebentada. À dor insuportável juntou-se o ardume do álcool, jogado à vontade sobre a ferida. Alguém usa um pano ou lenço para amarrar em torno do pulso. O torniquete improvisado diminui a sangüeira. Mais, Ambrósio não vê: desmaia e só não vai ao chão porque mãos vigorosas de colegas o seguram pelos sovacos.
Acordou no hospital ao anoitecer. A mão e o antebraço enfaixados eram uma tora fina enrolada em gaze. Não sentia a mão nem o braço.
— Gina...Gina... — gemeu, a boca seca. Olhou em volta. Viu a mulher sentada ao lado da cama. — Quero água.
Georgina acode a atendê-lo. Levanta a cabeça, coloca o copo entre os lábios. Ele bebe devagar, com dificuldade.
— Que aconteceu? Levanta o braço enfaixado. A face crispa de dor. Ambrósio geme alto.
— Calma, Ambrósio, calma. Tá tudo bem. O doutor Gomes costurou tudo. Tá tudo bem.
Ambrósio tenta se virar de lado. Acostumado com as poucas máquinas da marcenaria — desempenadeira, tupia, serra, torno e lixadeira — sabe o estrago que fazem quando pegam as mãos dos marceneiros inexperientes. O que não é o seu caso, absolutamente. Há mais de vinte anos que exerce o ofício, nunca lhe acontecera nada de grave. Fecha os olhos e cai numa modorra febril.

De repente, Georgina se viu responsável pelo sustento da casa. Modesto marceneiro. Ambrósio cuidava da família com seu ofício. O que ganhava ia na manutenção da casa, no sustento da família: ele, a mulher e cinco crianças. Vivia, como se dizia, “da mão pra boca”. Não tinha economias e só conseguia algum dinheiro extra quando aparecia um móvel velho para conserto, o que fazia à noite, em sua própria casa, sob o telheiro do quintal. Georgina era uma competente dona-de-casa. Não gastava mais do que o marido trazia do trabalho e viviam modestamente, porém sem miséria. Mas agora, cessada a renda, como faria para tratar das crianças, mandar o mais velho, o Du, para a escola? Felizmente, tinha a conta de caderneta do empório, acertada todo fim de mês. Mas precisava de trocados diários para o pão, o leite, o açougue. Sem falar nos remédios para o marido. Os cinqüenta cruzeiros que Adamastor, o patrão do marido, lhe emprestara no dia seguinte ao acidente, já tinham ido para pagar a caderneta do empório no acerto do fim de mês. Preocupava-a principalmente o tempo que o doutor Gomes previu para o restabelecimento do marido.
— Pelo menos nos próximos quatro meses o Ambrósio não poderá trabalhar, não senhora.
Quatro meses! Minha Nossa Senhora, como vou arrumar? Ocorreu-lhe trabalhar para fora, procurar emprego nas casas dos ricos da cidade — mas, e as crianças? Du está com 11 nos, não dá conta de tomar conta dos outros. Além de que deve preparar o próprio Du, mais Dalva e Dolores, para irem ao Grupo Escolar. E tem ainda a Dina e Dorotéia, três e quatro anos. Na escola, as meninas não a preocupam tanto, mas Eduardo não gosta de estudar. Todos os dias, tem de cobrar do garoto o para-casa, as lições decoradas de geografia e história. Não, não posso deixar as crianças sozinhas. Vou lavar roupa pra fora.
Decidida, procurou e encontrou trabalho. Começou lavando e passando roupas para três famílias do centro da cidade, o que lhe proporcionou algum dinheiro, pelo menos para o dia-a-dia. A caderneta no empório do seu Belém iria ficar para ser acertada quando Ambrósio voltasse ao trabalho, tudo combinado entre ela e o dono do armazém.
Eduardo foi encaixado na nova rotina da família: ia buscar a roupa servida e levá-la, limpa e passada, no dia seguinte, a cada freguesa. Isto três vezes por semana, nas terças, quartas e quintas. As perninhas, curtas mas resistentes, se arqueavam ainda mais sob as trouxas de roupas. Para levar as peças limpas, dava duas ou três viagens.
— Cuidado para não amassar nem deixar cair no chão, viu?
Nas primeiras semanas, Georgina sofre com dores nas costas. Não acostumada com tanta roupa para lavar, bater no batedouro, quarar na grama que funcionava como quaradouro, passar as peças com o ferro de brasa (que a eletricidade custa muito), ficava com o corpo quebrado, parecendo que havia levado uma surra. Mas acabou por se acostumar. Chás e compressas quentes sobre os ombros e nas ancas ajudaram bastante.

Passado o susto, ainda no hospital, Ambrósio quis saber da sua real situação.
— Você perdeu dois dedos: o médio e o anular. Foram decepados pela máquina. A palma da mão foi toda escalavrada, mas vai sarar. Vai se recuperar. — O doutor Gomes foi curto e grosso, nada escondeu do marceneiro. — Dentro de seis meses poderá voltar ao trabalho.
— Seis meses ?! Não posso ficar tanto tempo sem trabalhar.
O médico não teve como responder.
Ambrósio era marceneiro competente e muito estimado entre os colegas. Simples, modesto e tranqüilo. Há mais de vinte anos exercia seu ofício porque começara a trabalhar muito cedo, com catorze ou quinze anos. Cuidadoso, foi adquirindo, ao longo dos anos, as ferramentas de que necessitava. Na sua caixa de ferramentas, uma cômoda de seis gavetas , com um metro de altura por oitenta centímetros de fundo e altura de um metro e vinte, tinha um ferramental de primeira qualidade, de que ele muito se orgulhava: formões alemães da marca Sollingen, trenas, metros, esquadros U.S.Smith; plainas de aço sueco e uma curiosa coleção de formões especiais para entalhar madeira, de origem italiana: goivas, ponteiras, formões na forma de “u” e de “v”, que usava no acabamento dos frontões e molduras entalhadas.Era tão entusiasmado com suas ferramentas que, quando algum cliente (geralmente as mulheres) elogiava seu trabalho, ele quase que se desculpava de suas habilidades, dizendo:
— Que nada, senhora. Quem tem uma boa ferramenta, já está com metade do serviço feito.

Nos primeiros meses os curativos eram feitos diariamente na sala de emergência do hospital. A partir do terceiro mês, dia sim, dia não, lá ia Ambrósio para os curativos. No quinto mês, as bandagens cobriam apenas os cotos dos dedos decepados pela desempenadeira. A palma da mão cicatrizara e os movimentos dos dedos restantes estavam normalizados.
— Faça de conta que o senhor é um expedicionário que voltou da guerra. — A gorda enfermeira Maria de Lurdes brincava com o paciente, enquanto trocava as faixas e o algodão, passava desinfetante e pomada, voltando a cobrir a mão. — Olhe que o senhor está melhor do que muitos dos que voltaram em cadeiras de rodas ou em muletas. — A alusão aos soldados que voltavam estropiados e aleijados da guerra na Itália pouco consolo proporcionava a Ambrósio.
Foram sete meses de dificuldades na casa do marceneiro acidentado. No início, Ambrósio conseguira esconder a dor mas não sabia disfarçar a impaciência e o nervosismo — quer pela inatividade forçada, quer pelas preocupações de origem financeira. Não tinha nem mesmo a certeza de que um dia voltaria a trabalhar com seus formões e goivas. Implicava com as crianças, que não compreendiam como o pai, antes tão calmo e paciente, agora podia ser ríspido e aborrecido.
— Não liguem não, meninas. O pai vai sarar e voltar logo a ser bonzinho de novo.
Eduardo terminou o curso primário no Grupo Escolar Coronel Joaquim Pedroso e em seguida arrumou emprego na loja de seu Belém, cujo movimento aumentava dia-a-dia. Já completara onze anos e desenvolvia-se rapidamente. Às meninas maiores ficou a tarefa de buscar e levar a roupa que Georgina continuava lavando.
Pelos meados de abril, no sexto mês de seu restabelecimento, Ambrósio voltou a freqüentar a oficina. Alguns dias na semana e em seguida todos os dias. Por um acordo com o proprietário, passou a ajudar os colegas no que podia fazer, usando apenas a mão esquerda no leva e trás de ferramentas e pequenas peças de madeira, ripas ou caibros; desenvolveu habilidades próprias, como varrer o chão usando a vassoura com uma só mão. Ou ajuntar o lixo com auxílio dos pés, que prendiam a pá pequena, que ele mesmo inventara. Coisas assim, que foram, pouco a pouco, aliviando-lhe o espírito e proporcionando alguma renda, ainda que pequena, com a qual melhorou a situação doméstica.

Passado mais de um ano do acidente, sobre o qual já pouco se falava, tudo parecia voltar ao normal. As despesas do hospital foram pagas pelo proprietário da oficina, já que não havia seguro de acidentes ou qualquer outro tipo de precaução em face de tais ocorrências. Gina acostumara-se aos trabalhos de lavar roupas, com o que ajudava substancialmente na renda da casa. Eduardo cresceu em tamanho e responsabilidade e tinha salário de adulto no “Empório Belém”. As meninas cresciam em tamanho e em dotes, todas lindas, inteligentes, educadas.
Lindolfo da Serra, colega e amigo de Ambrósio, aproximou-se uma tarde e falou-lhe em tom confidencial:
— Aquele acidente — quando o senhor perdeu os dedos — não foi por acaso, não. A gente sabe quem tinha trabalhado naquela máquina, na véspera do senhor se machucar.
— Ah, mas que bobagem! Claro que foi descuido meu. — Ambrósio, que não tinha inimigos e sequer desafetos, não podia admitir que fora vítima de alguma vingança. Ademais, quem poderia afirmar que o Lindolfo estava completamente são (ele gostava demais de umas mindubas, principalmente na parte da manhã) naquele dia, naquela hora?
— Foi o Hermes. Foi ele quem usou a máquina na véspera e deixou os parafusos frouxos.
— Cê tem certeza?
— Claro! Aqui na oficina, todo mundo sabe, mas ninguém quis falar.
— O Hermes? Mas como, ele é um rapaz tão quieto, trabalhador. — Ambrósio pensa com tranqüilidade. Pondera com Lindolfo— Não, não acredito mesmo. Não tem nada a ver.
— Mas foi ele mesmo.
— De propósito?
— Bem, isso ninguém pode jurar. Só se o senhor tinha alguma rixa com ele.
— Nunca! A gente se fala muito pouco...
O pensamento de Ambrósio se volta, num átimo, àquela fatídica manhã. Lembra-se com detalhes dos momentos do acidente e até dos que o precederam. Ele, normalmente muito cuidadoso, esquecera-se realmente de conferir o estado da máquina. Não apertara as porcas e os parafusos, o que fazia sistematicamente. Rotina de serviço. Naquele dia, tinha certeza, deixara de exercer a rotina. Então...
— Não, Lauro, não acredito! Além do quê, companheiro, a gente pode confiar ou desconfiar das pessoas, que têm sentimentos. Mas não pode confiar, de maneira alguma, numa máquina sem alma nem coração.



Antonio Roque Gobbo
S.S.Paraíso, 16.1.2003
Conto # 202 da Série Milistórias