sábado, 17 de dezembro de 2011

ACIDENTE PROFISSIONAL

— Du, vai na venda e traz um sabão e um anil! Vai num pé e volta noutro, ouviu?
A ordem da mãe vem do quintal. Eduardo ouve, levanta-se a vai à cozinha. Na prateleira do guarda-comida apanha a caderneta da venda e grita para a mãe:
— Tou indo, mãe!
Tem pressa. Entre as folhas do livro de história do Brasil está escondida uma revistinha de histórias em quadrinhos de sacanagem. Já viu, não se sabe quantas vezes, a tal história. Mas sempre se delicia com as figurinhas mal desenhadas que mostram um simples encontro entre um homem e uma mulher que termina numa “trepada”. Mais tarde, irá se masturbar, lembrando-se das cenas toscas e dos personagens sem expressão. Ao passar pela porta do quarto onde dormem a mãe e o pai, ouve um gemido: é o pai, que só geme quando está dormindo. Papai tá sentindo dor. Coitado. Pensa, afastando-se da porta.
Enquanto caminha com as pernas curtas e cambaias, descalço, na direção da loja de seu Belém, remói as queixas que não consegue falar com a mãe. É todo dia a mesma lengalenga. Uma barra de sabão e uma pedrinha de anil. Por que não compra logo três ou quatro barras de sabão, anil para a semana? Tudo fica anotado na caderneta pra pagar no fim do mês. Mas não pode, tem de ser todos os dias em que ela tem roupa pra lavar.

Ambrósio acordou com o próprio gemido. Passou mal a noite, com dores na mão enfaixada. Quando está acordado, consegue evitar os gemidos. Para não dar mais preocupação à mulher ou evitar que as crianças fiquem mais assustadas. De madrugada dormiu um pouco e acordou com a fincada lancinante. Acordou com o gemido alto.
Já vai para mais de dois meses que se encontra naquela situação. Tudo aconteceu na fábrica de móveis onde trabalhava. Foi de manhã, logo no início do dia: ao passar uma peça de madeira na desempenadeira elétrica, uma das afiadas lâminas escapou de seu encaixe, fez o caibro voar de suas mãos, ao mesmo tempo em que engolia seus dedos e escalavrava a mão. Os colegas da oficina correram para atendê-lo. Desligaram a máquina, que parou num lamento, o som decrescendo como um animal morrendo. Sobre a superfície lisa da máquina, serragem e cavacos pintalgados de vermelho misturavam-se ao sangue que esguichava da mão arrebentada. À dor insuportável juntou-se o ardume do álcool, jogado à vontade sobre a ferida. Alguém usa um pano ou lenço para amarrar em torno do pulso. O torniquete improvisado diminui a sangüeira. Mais, Ambrósio não vê: desmaia e só não vai ao chão porque mãos vigorosas de colegas o seguram pelos sovacos.
Acordou no hospital ao anoitecer. A mão e o antebraço enfaixados eram uma tora fina enrolada em gaze. Não sentia a mão nem o braço.
— Gina...Gina... — gemeu, a boca seca. Olhou em volta. Viu a mulher sentada ao lado da cama. — Quero água.
Georgina acode a atendê-lo. Levanta a cabeça, coloca o copo entre os lábios. Ele bebe devagar, com dificuldade.
— Que aconteceu? Levanta o braço enfaixado. A face crispa de dor. Ambrósio geme alto.
— Calma, Ambrósio, calma. Tá tudo bem. O doutor Gomes costurou tudo. Tá tudo bem.
Ambrósio tenta se virar de lado. Acostumado com as poucas máquinas da marcenaria — desempenadeira, tupia, serra, torno e lixadeira — sabe o estrago que fazem quando pegam as mãos dos marceneiros inexperientes. O que não é o seu caso, absolutamente. Há mais de vinte anos que exerce o ofício, nunca lhe acontecera nada de grave. Fecha os olhos e cai numa modorra febril.

De repente, Georgina se viu responsável pelo sustento da casa. Modesto marceneiro. Ambrósio cuidava da família com seu ofício. O que ganhava ia na manutenção da casa, no sustento da família: ele, a mulher e cinco crianças. Vivia, como se dizia, “da mão pra boca”. Não tinha economias e só conseguia algum dinheiro extra quando aparecia um móvel velho para conserto, o que fazia à noite, em sua própria casa, sob o telheiro do quintal. Georgina era uma competente dona-de-casa. Não gastava mais do que o marido trazia do trabalho e viviam modestamente, porém sem miséria. Mas agora, cessada a renda, como faria para tratar das crianças, mandar o mais velho, o Du, para a escola? Felizmente, tinha a conta de caderneta do empório, acertada todo fim de mês. Mas precisava de trocados diários para o pão, o leite, o açougue. Sem falar nos remédios para o marido. Os cinqüenta cruzeiros que Adamastor, o patrão do marido, lhe emprestara no dia seguinte ao acidente, já tinham ido para pagar a caderneta do empório no acerto do fim de mês. Preocupava-a principalmente o tempo que o doutor Gomes previu para o restabelecimento do marido.
— Pelo menos nos próximos quatro meses o Ambrósio não poderá trabalhar, não senhora.
Quatro meses! Minha Nossa Senhora, como vou arrumar? Ocorreu-lhe trabalhar para fora, procurar emprego nas casas dos ricos da cidade — mas, e as crianças? Du está com 11 nos, não dá conta de tomar conta dos outros. Além de que deve preparar o próprio Du, mais Dalva e Dolores, para irem ao Grupo Escolar. E tem ainda a Dina e Dorotéia, três e quatro anos. Na escola, as meninas não a preocupam tanto, mas Eduardo não gosta de estudar. Todos os dias, tem de cobrar do garoto o para-casa, as lições decoradas de geografia e história. Não, não posso deixar as crianças sozinhas. Vou lavar roupa pra fora.
Decidida, procurou e encontrou trabalho. Começou lavando e passando roupas para três famílias do centro da cidade, o que lhe proporcionou algum dinheiro, pelo menos para o dia-a-dia. A caderneta no empório do seu Belém iria ficar para ser acertada quando Ambrósio voltasse ao trabalho, tudo combinado entre ela e o dono do armazém.
Eduardo foi encaixado na nova rotina da família: ia buscar a roupa servida e levá-la, limpa e passada, no dia seguinte, a cada freguesa. Isto três vezes por semana, nas terças, quartas e quintas. As perninhas, curtas mas resistentes, se arqueavam ainda mais sob as trouxas de roupas. Para levar as peças limpas, dava duas ou três viagens.
— Cuidado para não amassar nem deixar cair no chão, viu?
Nas primeiras semanas, Georgina sofre com dores nas costas. Não acostumada com tanta roupa para lavar, bater no batedouro, quarar na grama que funcionava como quaradouro, passar as peças com o ferro de brasa (que a eletricidade custa muito), ficava com o corpo quebrado, parecendo que havia levado uma surra. Mas acabou por se acostumar. Chás e compressas quentes sobre os ombros e nas ancas ajudaram bastante.

Passado o susto, ainda no hospital, Ambrósio quis saber da sua real situação.
— Você perdeu dois dedos: o médio e o anular. Foram decepados pela máquina. A palma da mão foi toda escalavrada, mas vai sarar. Vai se recuperar. — O doutor Gomes foi curto e grosso, nada escondeu do marceneiro. — Dentro de seis meses poderá voltar ao trabalho.
— Seis meses ?! Não posso ficar tanto tempo sem trabalhar.
O médico não teve como responder.
Ambrósio era marceneiro competente e muito estimado entre os colegas. Simples, modesto e tranqüilo. Há mais de vinte anos exercia seu ofício porque começara a trabalhar muito cedo, com catorze ou quinze anos. Cuidadoso, foi adquirindo, ao longo dos anos, as ferramentas de que necessitava. Na sua caixa de ferramentas, uma cômoda de seis gavetas , com um metro de altura por oitenta centímetros de fundo e altura de um metro e vinte, tinha um ferramental de primeira qualidade, de que ele muito se orgulhava: formões alemães da marca Sollingen, trenas, metros, esquadros U.S.Smith; plainas de aço sueco e uma curiosa coleção de formões especiais para entalhar madeira, de origem italiana: goivas, ponteiras, formões na forma de “u” e de “v”, que usava no acabamento dos frontões e molduras entalhadas.Era tão entusiasmado com suas ferramentas que, quando algum cliente (geralmente as mulheres) elogiava seu trabalho, ele quase que se desculpava de suas habilidades, dizendo:
— Que nada, senhora. Quem tem uma boa ferramenta, já está com metade do serviço feito.

Nos primeiros meses os curativos eram feitos diariamente na sala de emergência do hospital. A partir do terceiro mês, dia sim, dia não, lá ia Ambrósio para os curativos. No quinto mês, as bandagens cobriam apenas os cotos dos dedos decepados pela desempenadeira. A palma da mão cicatrizara e os movimentos dos dedos restantes estavam normalizados.
— Faça de conta que o senhor é um expedicionário que voltou da guerra. — A gorda enfermeira Maria de Lurdes brincava com o paciente, enquanto trocava as faixas e o algodão, passava desinfetante e pomada, voltando a cobrir a mão. — Olhe que o senhor está melhor do que muitos dos que voltaram em cadeiras de rodas ou em muletas. — A alusão aos soldados que voltavam estropiados e aleijados da guerra na Itália pouco consolo proporcionava a Ambrósio.
Foram sete meses de dificuldades na casa do marceneiro acidentado. No início, Ambrósio conseguira esconder a dor mas não sabia disfarçar a impaciência e o nervosismo — quer pela inatividade forçada, quer pelas preocupações de origem financeira. Não tinha nem mesmo a certeza de que um dia voltaria a trabalhar com seus formões e goivas. Implicava com as crianças, que não compreendiam como o pai, antes tão calmo e paciente, agora podia ser ríspido e aborrecido.
— Não liguem não, meninas. O pai vai sarar e voltar logo a ser bonzinho de novo.
Eduardo terminou o curso primário no Grupo Escolar Coronel Joaquim Pedroso e em seguida arrumou emprego na loja de seu Belém, cujo movimento aumentava dia-a-dia. Já completara onze anos e desenvolvia-se rapidamente. Às meninas maiores ficou a tarefa de buscar e levar a roupa que Georgina continuava lavando.
Pelos meados de abril, no sexto mês de seu restabelecimento, Ambrósio voltou a freqüentar a oficina. Alguns dias na semana e em seguida todos os dias. Por um acordo com o proprietário, passou a ajudar os colegas no que podia fazer, usando apenas a mão esquerda no leva e trás de ferramentas e pequenas peças de madeira, ripas ou caibros; desenvolveu habilidades próprias, como varrer o chão usando a vassoura com uma só mão. Ou ajuntar o lixo com auxílio dos pés, que prendiam a pá pequena, que ele mesmo inventara. Coisas assim, que foram, pouco a pouco, aliviando-lhe o espírito e proporcionando alguma renda, ainda que pequena, com a qual melhorou a situação doméstica.

Passado mais de um ano do acidente, sobre o qual já pouco se falava, tudo parecia voltar ao normal. As despesas do hospital foram pagas pelo proprietário da oficina, já que não havia seguro de acidentes ou qualquer outro tipo de precaução em face de tais ocorrências. Gina acostumara-se aos trabalhos de lavar roupas, com o que ajudava substancialmente na renda da casa. Eduardo cresceu em tamanho e responsabilidade e tinha salário de adulto no “Empório Belém”. As meninas cresciam em tamanho e em dotes, todas lindas, inteligentes, educadas.
Lindolfo da Serra, colega e amigo de Ambrósio, aproximou-se uma tarde e falou-lhe em tom confidencial:
— Aquele acidente — quando o senhor perdeu os dedos — não foi por acaso, não. A gente sabe quem tinha trabalhado naquela máquina, na véspera do senhor se machucar.
— Ah, mas que bobagem! Claro que foi descuido meu. — Ambrósio, que não tinha inimigos e sequer desafetos, não podia admitir que fora vítima de alguma vingança. Ademais, quem poderia afirmar que o Lindolfo estava completamente são (ele gostava demais de umas mindubas, principalmente na parte da manhã) naquele dia, naquela hora?
— Foi o Hermes. Foi ele quem usou a máquina na véspera e deixou os parafusos frouxos.
— Cê tem certeza?
— Claro! Aqui na oficina, todo mundo sabe, mas ninguém quis falar.
— O Hermes? Mas como, ele é um rapaz tão quieto, trabalhador. — Ambrósio pensa com tranqüilidade. Pondera com Lindolfo— Não, não acredito mesmo. Não tem nada a ver.
— Mas foi ele mesmo.
— De propósito?
— Bem, isso ninguém pode jurar. Só se o senhor tinha alguma rixa com ele.
— Nunca! A gente se fala muito pouco...
O pensamento de Ambrósio se volta, num átimo, àquela fatídica manhã. Lembra-se com detalhes dos momentos do acidente e até dos que o precederam. Ele, normalmente muito cuidadoso, esquecera-se realmente de conferir o estado da máquina. Não apertara as porcas e os parafusos, o que fazia sistematicamente. Rotina de serviço. Naquele dia, tinha certeza, deixara de exercer a rotina. Então...
— Não, Lauro, não acredito! Além do quê, companheiro, a gente pode confiar ou desconfiar das pessoas, que têm sentimentos. Mas não pode confiar, de maneira alguma, numa máquina sem alma nem coração.



Antonio Roque Gobbo
S.S.Paraíso, 16.1.2003
Conto # 202 da Série Milistórias